Desastre

Há quem pretenda
que o poema seja
mármore
ou cristal – o meu
o queria pêssego
pêra
banana apodrecendo num prato
e se possível
numa varanda
onde pessoas trabalhem e falem
e donde se ouça
o barulho da rua
Ah quem me dera
o poema podre
a polpa fendida
exposto
o avesso da voz
minando
no prato
o licor a química
das silabas
o desintegrando-se cadáver
das metáforas
um poema
como um desastre em curso.

Ferreira Gullar

Sanhaço

A alteridade que em vão nos pugna
Faz-me ao espelho buscar a tua imagem
Para irmos juntos co´as as almas flamas
Refletidas sempre e sempre desde aparte.

Se a prosódia é escolha e por estilo
Em transitivo o Verbo Ser eu fui tornar
Posto que para te amar mais
Do que querer-te é preciso Ser-te!

Se pouso meus olhos em teus olhos
Tristes e umedeço
E se ao grito surdo do mundo eu silencio
Se em teu verso solto me reconheço
Arauto de um viver confuso que anuncio
O amor que eu tive e que me esqueço
É ardor mais profundo que fastio.

Ferve em ti a epiderme, seja equinócio ou veranico
Como um sanhaço tece a enlaçada trama, fio a fio.
Quisera-te a alumbrada seiva dos desejos
A claridade do sorriso na bela fronte
Quisera os sons perdidos no solfejo
E na manhã do céu bruxuleante
O derradeiro sortilégio de uma estrela.

No claro/escuro em que me encontro
E ao fulgor de uma vela acesa
Velar-te em cálido e longo beijo de cinema
Num filme amante em que por fraco, anoiteço.

Levitem-se as taças, senhores! Ante a definitiva maça
E a analogia ébria com grandes calangos, tais horrores
Quadra livre que restar, dê-la a intensos ósculos, ardores.

A existência inteira a teve, a evitar-se os desmazelos.
Ao confluir dos rios, a afluência ascendente dos desejos.
Assim, compartir no coevo, a súmula diversa de tais beijos.

Ante a Tumba, os Ardores


Da magistral manhã em que o sopro venta
Ao sinuoso e estreito coche em que silencia
A vida, que se já não houve, mais se ausenta
Por entre o verde denso e alheio que vicia.

O poeta civil a fenecer, depravando em rude.
Tenazes bardos, putains, hijos, de vívida solidão
Se verão imortais amores, qual ilhas de solicitude.
Resta-lhe ao augure, à campa, fulgor assaz invenção.

De Bentinho para Capitu


A Joaquim Maria Machado de Assis

Observar-te em plácido sono, cuidado em madrigal
Levedura, entregue e lânguida, em negra gaze envolvida
Sobre o verde da relva, a serena ventura
De uma dama etérea, de tez tão clara
E, ainda mais, assim adormecida.
Como me é belo vislumbra-te
Ida à navegação dos sonhos.
É como liberar, num só mágico instante
Toda a dor, que de meu corpo fez refém
E da razão, me fez imune.
Ao sentir-te agora, no que, por meu desejo
Haveria sido ausente as neves da mútua incongruência
Defesnestro este o ignóbil e mortal ciúme.
Destarte, mesmo que o acaso de alguns intensos beijos
E estando longe das luzes de qualquer ciência
Ver-te assim, menina bela de minha existência
Como, em levitação, uma boneca de louça
E nem a mínima ruga na fronte alva
Que lhe turve o sono fundo e crispe o rosto
Devolve-se-me a crença no amor
E a plenitude à alma
E sem que Deus nenhum me ouça.
Faz-me ledo entender o porquê simulo tanto
E o porquê, de perdê-la, assim, tanto medo E o porque, de que tanto, a mim mesmo, minto.

Cinza Interior


a Ferreira Gullar

a casa é sempre presença
chão com falhas
que esconde o cisco de ovo
não varrido

a casa recende a café da manhã
e a outros cheiros
de um dia começando
misturado aos ficados da noite

a casa é o trabalho dos anos
a oclusão dos cantos
a ruminação dos insetos

a casa é o vento da tarde
é a espera pela chuva
para o viver do telhado

a casa é a saudade

é o beiral de abrigar ninhos
a algaravia das andorinhas

amor de pai/prontidão de filho
promessas de eternidade

a casa é vinho do porto
acalentando a noite fria
noite de amor lúbrico

a casa é choro de criança
lugar de morte e vigília

a casa é a casa da fazenda
avistando da varanda
os pastos no vale umbrífero
lá no longe da memória

a casa é útero ubérrimo
a parir aconchegos
e a preguiça doce do não-ser

Amor Perene


Ao alcance do amor perene, o herói
entrou-se por caminhos áridos.
Estorou as botas
na poeira ardente do chão.
Ao alcance do amar, somente
o herói vingou-se em ser sobrante
nas vagas e em tais mares presentes
navegou por novas rotas.

Ao alcance de um amor crente
viu-se em luz branca e brilhante
entregue, indefeso aos anseios
das sirenas sibilantes
à lhe turvarem a mente.

Ao alcance do amor, foi-se...andou
tão tonto ao sol latente, até seu brônzeo limiar.
Tomou da vida o mote e das costas da África
foi para o Mar Egeu, cuidando de buscar Amor
mais do que Hades, à Morte, mais do que honras
devidas, ao poderoso Odisseu.

Ao alcance do amor grande, se perdeu
pelo mar ingente e infindo
e ao colo das mulheres
que escalou feito falésias.

Ao alcance do amor fundo, tomou
o fogo à Prometeu e restituiu a luz do mundo
ao célebre sábio Tirésias.

O rapto à Tróia, de Helene...
O que mais se poderia
que lhe equivalesse em glórias

ao alcance do Amor Perene?

CARTA A UM JOVEM POETA

Paris, 17 de fevereiro de 1903
Prezadíssimo Senhor,
Sua carta alcançou-me apenas há poucos dias. Quero agradecer-lhe a grande e amável confiança. Pouco mais posso fazer. Não posso entrar em considerações acerca da feição de seus versos, pois sou alheio a toda e qualquer intenção crítica. Não há nada menos apropriado para tocar numa obra de arte do que palavras de crítica, que sempre resultam em mal-entendidos mais ou menos felizes.
As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizíveis quanto se nos pretenderia fazer crer; a maior parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou. Menos suscetíveis de expressão do que qualquer outra coisa são as obras de arte, — seres misteriosos cuja vida perdura, ao lado da nossa, efêmera.
Depois de feito este reparo, dir-lhe-ei ainda que seus versos não possuem feição própria, somente acenos discretos e velados de personalidade. É o que sinto com a maior clareza no último poema Minha alma. Aí, algo de peculiar procura expressão e forma. No belo poema A Leopardi talvez uma espécie de parentesco com esse grande solitário esteja apontando. No entanto, as poesias nada têm ainda de próprio e de independente, nem mesmo a última, nem mesmo a dirigida a Leopardi. Sua amável carta que as acompanha não deixou de me explicar certa insuficiência que senti ao ler seus versos sem que a pudesse definir explicitamente. Pergunta se os seus versos são bons.
Pergunta-o a mim, depois de o ter perguntado a outras pessoas. Manda-os a periódicos, compara-os com outras poesias e inquieta-se quando suas tentativas são recusadas por um ou outro redator. Pois bem — usando da licença que me deu de aconselhá-lo — peço-lhe que deixe tudo isso.
O senhor está olhando para fora, e é justamente o que menos deveria fazer neste momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar, — ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranquila de sua noite: "Sou mesmo forçado a escrever?” Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples "sou", então construa a sua vida de acordo com esta necessidade. Sua vida, até em sua hora mais indiferente e anódina, deverá tornar-se o sinal e o testemunho de tal pressão.
Aproxime-se então da natureza. Depois procure, como se fosse o primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde. Não escreva poesias de amor. Evite de início as formas usais e demasiado comuns: são essas as mais difíceis, pois precisa-se de uma força grande e amadurecida para se produzir algo de pessoal num domínio em que sobram tradições boas, algumas brilhantes. Eis por que deve fugir dos motivos gerais para aqueles que a sua própria existência cotidiana lhe oferece; relate suas mágoas e seus desejos, seus pensamentos passageiros, sua fé em qualquer beleza — relate tudo isto com íntima e humilde sinceridade.
Utilize, para se exprimir, as coisas do seu ambiente, as imagens dos seus sonhos e os objetos de sua lembrança. Se a própria existência cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse a si mesmo, diga consigo que não é bastante poeta para extrair as suas riquezas. Para o criador, com efeito, não há pobreza nem lugar mesquinho e indiferente.
Mesmo que se encontrasse numa prisão, cujas paredes impedissem todos os ruídos do mundo de chegar aos seus ouvidos, não lhe ficaria sempre sua infância, esta esplêndida e régia riqueza, esse tesouro de recordações? Volte a atenção para ela.
Procure soerguer as sensações submersas deste longínquo passado: sua personalidade há de reforçar-se, sua solidão há de alargar-se e transformar-se numa habitação entre o lusco e fusco diante do qual o ruído dos outros passa longe, sem nela penetrar. Se depois desta volta para dentro, deste ensimesmar-se, brotarem versos, não mais pensará em perguntar seja a quem for se são bons.
Nem tão pouco tentará interessar as revistas por esses seus trabalhos, pois há de ver neles sua querida propriedade natural, um pedaço e uma voz de sua vida. Uma obra de arte é boa quando nasceu por necessidade. Neste carácter de origem está o seu critério, — o único existente. Também, meu prezado Senhor, não lhe posso dar outro conselho fora deste: entrar em si e examinar as profundidades de onde jorra sua vida; na fonte desta é que encontrará resposta à questão de saber se deve criar. Aceite-a tal como se lhe apresentar à primeira vista sem procurar interpretá-la.
Talvez venha significar que o Senhor é chamado a ser um artista.
Nesse caso aceite o destino e carregue-o com seu peso e a sua grandeza, sem nunca se preocupar com recompensa que possa vir de fora. O criador, com efeito, deve ser um mundo para si mesmo e encontrar tudo em si e nessa natureza a que se aliou.
Mas talvez se dê o caso de, após essa decida em si mesmo e em seu âmago solitário, ter o Senhor de renunciar a se tornar poeta. (Basta como já disse, sentir que se poderia viver sem escrever para não mais se ter o direito de fazê-lo). Mesmo assim, o exame de sua consciência que lhe peço não terá sido inútil.
Sua vida, a partir desse momento, há de encontrar caminhos próprios. Que sejam bons, ricos e largos é o que lhe desejo, muito mais do que lhe posso exprimir. Que mais lhe devo dizer? Parece-me que tudo foi acentuado segundo convinha. Afinal de contas, queria apenas sugerir-lhe que se deixasse chegar com discrição e gravidade ao termo de sua evolução. Nada a poderia perturbar mais do que olhar para fora e aguardar de fora respostas a perguntas a que talvez somente seu sentimento mais íntimo possa responder na hora mais silenciosa.
Foi com alegria que encontrei em sua carta o nome do professor Horacek; guardo por este amável sábio uma grande estima e uma gratidão que desafia os anos. Fale-lhe, por favor, neste meu sentimento. É bondade dele lembrar-se ainda de mim; e eu sei apreciá-la.Restituo-lhe ao mesmo tempo os versos que me veio confiar amigavelmente.
Agradeço-lhe mais uma vez a grandeza e a cordialidade de sua confiança. Procurei por meio desta resposta sincera, feita o melhor que pude, tornar-me um pouco mais digno dela do que realmente sou, em minha qualidade de estranho.
Com todo o devotamento e toda a simpatia,
Rainer Maria Rilke

ENSAIO - A Poesia Brasileira e a Nova Utopia

O atual momento da poesia no país se caracteriza por não trazer uma marca, um estilo literário próprio que defina o período. Talvez a grande marca seja mesmo a diversidade e o compasso de espera para uma nova fase, como uma etapa de maturação necessaria.

De certa forma, isto desfavorece o seu desenvolvimento da poesia contemporânea, pois a não colocação do problema (ou colocação como problema) da contribuição cuivilizatória da poesia, não fixa objetivos em torno dos quais se possa evoluir a reflexão critica necessária a qualquer processo cultural.

Existem hoje dezenas de pequenos grupos de poetas anônimos, conhecidos entre seus pares, conhecidos em um segmentos de referencias indermediárias, etc, que lutam de forma quase clandestina para mostrar a sua produção, contra o desinteresse das editoras.

Estes grupos festejam a redescoberta do fazer poético como meio de sensibilização. Varias experiências de qualidade estão sendo geradas (no Rio de Janeiro existem mais de 60 destes grupos), em um retorno aos saraus e "happenings" que foram característicos dos anos 70.

Por mais alvissareiro que seja este contexto, não parecem ainda ter encontrado um caminho valido para a afirmação de novo patamar para a poesia, e temo que estejam (generalizando) prisioneiros de uma excessiva alegria, da plasticidade da experiência, centrados em encontros voltados para uma oralidade performática teatral, que incorpora poesia, mas também desloca o foco do trabalho que parece necessário, entendendo a literatura (a poesia) como a mais alta das artes, pelo papel que desempenha na formação e renovação da línguagem.
Está faltando o trabalho da dor, que impulsiona a criação, da qual nos falava Clarice Lispector. Os grandes poetas nacionais, com efetiva presença no espaço institucional, de certa forma tem sido os mesmos que ocuparam a cena nas décadas anteriores e que se mantém, com as devidas referencias ao tempo presente, fiéis aos seus estilos originais, divididos entre uma poesia contida ou derramada. Temos no primeiro plano, Ferreira Gullar, Gilberto Mendonça Telles, Antonio Olinto, Carlos Nejar, Manoel de Barros, Adélia Prado, Thiago de Mello, Afonso Romano, etc. Entre estes, há algum ensaísmo e atividade critica reflexiva, alem do que os seus próprios poemas refletem. Há também o time nascido da experiência da poesia marginal dos anos 70, herdeiros do Concretismo, do Tropicalismo, de Torquato Neto, Paulo Leminski e Wally Salomão, como Antonio Cícero, Secchin, Tavinho Paes, Carlito Azevedo, Fabrício Carpinejar, Geraldo Carneiro, Jorge Salomão, etc. Foram vanguardistas e hoje fazem uma poesia exemplarmente moderna, que funciona como uma certa crônica do cotidiano.
A não renovação no panteão da lírica literária, denota uma das dimensões da crise de perspectivas por que passa a cultura nacional (e global) numa era de transição de valores políticos e culturais.
A poesia, como elemento de compreensão e formação do espírito, perde substância e atuação para outras abordagens. Embora mantenha o interesse de certo público intelectualizado, a poesia deixou a muito de representar a referencia que já foi no país, quando nomes como Bilac, Augusto dos Anjos, Cruz e Souza, Drummond, Vinicius, Quintana, João Cabral, Bandeira, eram difundidos pelo sistema de ensino, e tinham quase a mesma visibilidade na mídia da época, que hoje é dada a uma “instant celebrity” da cultura de massas. Cada grande jornal nacional, tinha em sua folha de pagamentos, um poeta de quilate. A poesia quase desapareceu do horizonte da cultura nacional acompanhando a decadência acentuada do ensino e a emergência dos novos meios de difusão cultural, como a televisão e a Internet hoje, responsáveis em parte pela cultura do descartável. Vive-se um momento singular de renovação. Há a necessidade de se revisitar valores e ideologias, repensar praticas, refletir sobre a identidade nacional, o desenvolvimento social e o lugar do país no mundo, o que abre para o pensamento e a arte em geral, uma nova perspectiva. E nisto, creio, que a poesia terá papel especial em um momento em que outras abordagens, como a política partidária e a religião são obscurantistas e já não trazem em seu bojo a semente do futuro.
Ai está a poesia chamada de novo a cumprir um papel revolucionário, embora poucos sejam os poetas que busquem pensa-la desta maneira. É evidente que não se fala a favor de uma poesia panfletária, de baixa qualidade, mas, ao contrario, em investir em uma poesia de qualidade, que avance em reflexão temática, na linguística, etc, que impacte a necessária recuperação das estruturas educacionais.

A poesia deve entrar, como disciplina, nos currículos escolares. É preciso que os poetas abandonem a postura diletante, superem a vaidade que emperra e embota a criatividade e metam a mão na massa. A poesia foi a primeira forma de apreensão e sistematização do conhecimento no processo civilizatório ocidental. Foi a partir da reflexão poética que a humanidade pôde desenvolver as primeiras abordagens de novas disciplinas, como Retórica e Filosofia, esta ultima a mãe de todo o pensamento científico (quem leu a Poética de Aristóteles, viu o esforço de ordenação de um pensamento racional a partir dos achados da Poiesis).

Embora os filósofos tenham expulsado os poetas para a Arcádia, a poesia permaneceu como um instrumento iniludível para a educação dos espíritos, atravessando todas as eras da sociedade humana, por vezes assumindo papel de vanguarda na evolução social, haja vista a importância de poetas de renome para a formação social de suas nacionalidades, com Lorde Byron, Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud, Shakespeare, Camões, Fernando Pessoa, Lorca, Ezra Pound, Whittman e Neruda. Em nosso caso, Castro Alves, Drummond, etc.

O que nos resta fazer? Muito. Todos os que somos verdadeiramente devotados à lida do fazer poético, temos o dever de repensar o nosso papel, o papel da poesia na contemporaneidade, trabalhando temas como o reencontro com o processo civilizatório, com a educação e a construção do homem brasileiro do 3o milênio, com a formação da sensibilidade e o aperfeiçoamento das relações humanas, o combate à violência e a intolerância, a justiça social e o desenvolvimento, a superação das estruturas arcaicas remanescentes, a introjeção da ética na política, a integração mundial da experiência poética, o favorecimento da formação de público leitor, a recuperação do senso de coletividade e da solidariedade social, a defesa do meio-ambiente, a busca da valorização do individuo, da vida simples, frente ao consumismo e a cultura de massas, etc. São inúmeros os temas que a poesia deve enfrentar através da escrita, ou de seminários, eventos de rua, ensaios, etc.

Este é o caldo de cultura para a emergência de um movimento poético que poderíamos integrar na categoria de Neo-Romantismo, um possível romantismo do século XXI, que tenha como mote a expressão vivificada dos sonhos de felicidade submersos em poeira desde as frustrações humanas com as primeiras revoluções industriais.
É preciso elevar a condição do homem moderno, celebrando a natureza humana e a vida em geral, de forma visionária e panteísta. Do ponto de vista da forma literária, deve-se introduzir e favorecer a subjetividade na concepção poética, buscando nos versos livres a forma didática da expressão de um lirismo moderno, cujo parâmetro podem ser Watt Whittman ou Fernando Pessoa. Porém, não há cânone a ser respeitado, e se deve buscar requisitar achados e recriar sob todos os outros estilos poéticos, como o Barroco, o Arcadismo, o Parnasianismo, o Simbolismo, o Naturalismo, o Modernismo, o Concretismo, com a liberdade de um tempo que tem necessariamente que ser uma síntese para e da experiência humana.

O Neo-Romantismo deve buscar reconferir dignidade critica a vida humana em sociedade, promover a criatividade e o conhecimento, promover o carácter revolucionário do amor entre os homens e do amor a natureza, o ideal democrático, ou seja: Pode e deve a poesia ter relação direta com a vida real, tendo o individuo como medida das coisas, mas um individuo que busque a integração positiva e rejeite a submissão a uma condição indigna.
O nosso poeta Castro Alves e seu Navio Negreiro permanecem vivos como inspiração. O poeta, como artista, por possuir uma sensibilidade aguçada e deter os instrumentos formais da lírica, nem que seja para os abandonar a seguir, sofre de forma ampla as auguras de seu povo e das indagações intimas e existenciais, e pode refletir possíveis caminhos de forma exemplar, sem dogmatismos, favorecendo a evolução da sensibilidade de todos. Com isto, a poesia se qualifica e assume a clara missão de sua utopia: A de nos tornar pessoas melhores!

Avis Rara


quero te ver irrigando como mina
de água pura, vertente preciosa.
tua presença, um raio verde que corte o céu
trazendo à luz a marca guerreira de um deus capital.
te ver no morno clima de tarde airosa
tu, oh pássaro raro do puro apego
oh nave-mãe que cruzas plena e generosa
o circunscrito e infinito mar egeu.
meu cardo aflito se debate e ainda arde
como o martírio do infeliz prometeu.
lança-se ao céu o movil inquieto
de um eterno tempo grego
pare-se agora este horizonte que incandeia.
chegar tão perto, que tão perto assim se pare
e emparelhe o teu corpo junto ao meu
chegar tão perto que nunca mais que repare
neste meu jeito inseguro ou tão incerto.

A Quietude do Amor

Enfrentarei charcos para buscar para ti
dentre as mais belas flores
aquela que, de todas é a mais difícil
mais até que a flor dos amores.

Como um poeta luso, dar-te-ei
então a Flor do Lacio.
Seguirei contemplativo e ensimesmado
mas, alinhado e sempre rente
com a alma flama, o coração puro e vasto.

A paixão reconhecerei na arte; a poesia resolve tudo
como ao calor se dissolve o chocolate.
Buscarei a doçura que acarinha e envolve a vida

mesmo tanto rude, em grande, benfazejo
e alumbrado silencio. O calar, porem altivo
com a veemência assertiva de um surdo-mudo.
Não haverá maior plenitude, nem para o amor
um mais terno momento do que este
que de tão pouco, pode-se fazer em quase tudo.

De longe virá o tal silencio que se alcança
na quietude da entrega irrestrita, no apuro da
augusta paz ou no absoluto do esquecimento.

A Perfeição

Sigo sonhando com mulheres
de seios fartos e de corpos quentes.
Em meus sonhos, que se repetem
os seus corpos reincidem em mim
a alma de um pintor renascentista.
Tomo então estes corpos
como pranchas imaculadas
prontas para se preencher
com as mais vivazes cores da paleta;
o ocre, vermelho carmim
o amarelo ouro palestina
o verde da profusão marinha
o azul prussiano
tintas espalhadas, secas e molhadas
por minha saliva, minha ávida língua
no fio da terebintina.
Ao final, então, a perfeição de um ícone
Renascentista, de uma mentira bem acabada
plástica e vazia, mas perfeita
como a ilusão um quadro falso
no quarto de dormirsobre uma parede nua, lisa e fria.

A Pandorga

A pipa cavalga o vento,
impaciente, impossível,
transcendendo a solidão
da cidade clara.

Artefacta.
Papel de seda e
armação de taquara,
e mais, um pouco de grude,
em nada ela é cara.

A pipa,
Turbilhonando,
empinada ao vento
como bandeira tremulando
sobre a favela,
vai costurada
alma de menino.

A Mulher em Flor


A flor do amor deriva
O seu perfume
De sua intensa luz
Ou da dor do ciúme?
Ah, este tom encarnado, esta cor
Esta ilusão mais forte que a verdade.
Ah, esta úmida e recôndita flor
em cártula preciosa
de feminina beldade.
Ah, este radioso e rubro lume
Este hálito que incendeia
Aos instintos
Estas pétalas viçosas, acesas
Ou pequenas e confrangidas
Quando em frio atilado.
Nós homens, como iremos sobreviver
Tão frágeis somos
A este amor, quase veneno destilado
Pela inaudita flor do cio?

A (Re)União do céu com o mar


Andava, eu, solitário, um poeta sem vantagem,
pelo calçadão do Recreio, no domingo, um passeio,
deambulando o pensamento, respirando a paisagem.

O sol intenso desta primavera, que, após dias, voltava d’outras plagas frias,à canícula já formava, fazendo empacar meu não-ofensivo passatempo,para olhar e pensar no mar.Não, o pensar como um onírico território,para qualquer poético devaneio, mas, num prosaico mergulho, com o poder de abrandar.

Fui levando o corpo, sem alívio, lá para a beira da praia.
- Que é isto, seu louco? (me repreende a razão bifronte,
quando me atiro de pronto, na água infinitamente fria).
- Queres, no choque, romper um vaso ?
- Queres ter um AVC?
Mergulhei, pensando no que eu podia querer?
Talvez, quebrar o acaso, este que une o mar verde ao céu azul,
pois as cores (sempre imaginei) são inevitáveis irmãs.
E de novo afundei a cabeça, ainda quente do sol.

Súbito, quando emergi, um susto: É como se visse um vulto,no longe, caindo, caindo, em vôo e vertical-mergulho.

Penso que podia ter tido uma visão de atavismo,tanto que, míope, duvido desta vista que inda apuro,e reage ao tonteio do mar.
Se o sol, que lá ia ao alto, tinha seu jeito próprio de ofuscar a visão,havia também o frescor, que fácil, poderia, no delírio do prazer e da fé,iludir e comover, para que a mente humana, pudesse ver mais do que é.

Mas, eis que meu olhar parado, n’algum ponto de alem-mar,fez-se infesto ao ceticismo cartesiano de minha mente, descrente,e no mistério, neófito, pude ver a gaivota, artesã laboriosa,mergulhar seguidas vezes para desfazer o meu mal-feito,chuleando o céu rasgado, reatando-o com o mar,e tendo para o pesponteio, toda a linha do horizonte.

A Construção do Etéreo Lago

Em um dia pretérito, me pus a edificar um lago
e abandonei-me de pronto em tal projeto.
Eram terras de andarilho, a beira do chão
e reflui quando entre os meus não encontrei o eco.
Eis-me aqui, em outras andanças, reincidente e tonto.
Eis-me ao local que de antanho escolhi para o lago.
Cá estou, acocorado à fronde generosa e altaneira
de um coqueiro de inominada espécie
ombreado por uma altíssima (nem tanto) bananeira.
Percebo que te ainda te faltam arvores no derredor
ornato, sine qua, lago não serás. Que se inicie
com arvores especiais, coníferas honrosas
palmae, cítricas e outras
que te prendam as barranqueiras
e honrem-te nas floradas, nas frutas aquosas.
Como a Emilia, de Lobato, listo necessidades tais
severíssimo arquiteto
num caderno de anotar reformas.
Circundam-me e assistem a meus gestos
doutos e interessados em assuntos naturais
uma miríade de insetos.
Como a ajudar meu esboço, me dizem os coleópteros
de aumentar o previsto espelho d’água
para a perfeição de seus planos de vôo;
para as lepidópteras, basta, então o frescor das águas
na floração da primavera.
Os grandes mamíferos, já estes querem, sem ânsia
as tuas sugestões líricas plácidas
para conjecturas e ruminação sem fim.
Do alto da capoeira, um cavalo relincha a concordância.
Até mesmo a lua, ser mulher, mítica e luminosa
para mirar-se em tua planura noturnal
espera-te, incorrigível e vaidosa.
Os pássaros, Ah! Os pássaros!
Estes que já te visitam quando ainda és um charco
com tão efusiva alegria, parecem antevisar
o teu glorioso destino de lago.
Sim, glorioso, pois inda que modesto, não invejarás
as léguas do Titicaca. Sim, glorioso, posto que infinito
já que habitarás minhas memórias de afeto
concretizadas para alem de amores baldados
como o puro alento, desde as primas horas tristes
destes meus novos dias.
Dias em que de tudo se experimenta
mas só concreta a poesia
e não te permite mentir.
Continuo pela vida a me exprimir
e anotar reformas ao imperfeito plano de Deus
sob o signo da loucura, na plenitude do sentir.

Andorinha

Ah! Que surpresa constante
faz o livre vôo da andorinha
sobre a campina em flor;


Vôo rasante, irregular
regido pelo rumorejar
dos ares frios, no dia nascente.


Vai-se ao sul; não mais.
Vai-se ao leste; ou então
volta atrás, parecendo
renascer como Alceste.


Ah! Como é franco este adejar
imprimindo contra o azul
um tão pequenino porte.


Como as assertivas
em meus versos
a andorinha, vareja
sempre sem norte.

De Tanto Amar


Quando te vi, súbito, ornou-me o espírito
A esperança de que me pudesses amar.
Não há promessa mais vã
Nem uma que mais engane
Que mais se negue à virtude
Do que a promessa de amor puro.

Este, o amor, com certeza
Expressa em toda a excelência
O pendor comunicativo dos homens
E ao amar-te assim, profundo
Eu, egoísta que sou
Intimamente me ligo ao mundo.

Amo-te, pois, para ser tu
Compassivo como o amor prana.
A imatéria amante que se espraia
E que transpõe o alto muro.
A carne do Deus dos ateus
Em sua face mais humana.

Amo-te pois, para ser tu em sendo eu.
Querer os teus próprios quereres
Privar de teus nédios momentos.
Amo-te para tê-la em meus braços
Ou para retê-la em pensamentos.

Amo-te mesmo que me reste perdê-la
Por inúteis, os meus pífios poderes
Por tão frágeis os meus poucos talentos.