Desastre

Há quem pretenda
que o poema seja
mármore
ou cristal – o meu
o queria pêssego
pêra
banana apodrecendo num prato
e se possível
numa varanda
onde pessoas trabalhem e falem
e donde se ouça
o barulho da rua
Ah quem me dera
o poema podre
a polpa fendida
exposto
o avesso da voz
minando
no prato
o licor a química
das silabas
o desintegrando-se cadáver
das metáforas
um poema
como um desastre em curso.

Ferreira Gullar

Sanhaço

A alteridade que em vão nos pugna
Faz-me ao espelho buscar a tua imagem
Para irmos juntos co´as as almas flamas
Refletidas sempre e sempre desde aparte.

Se a prosódia é escolha e por estilo
Em transitivo o Verbo Ser eu fui tornar
Posto que para te amar mais
Do que querer-te é preciso Ser-te!

Se pouso meus olhos em teus olhos
Tristes e umedeço
E se ao grito surdo do mundo eu silencio
Se em teu verso solto me reconheço
Arauto de um viver confuso que anuncio
O amor que eu tive e que me esqueço
É ardor mais profundo que fastio.

Ferve em ti a epiderme, seja equinócio ou veranico
Como um sanhaço tece a enlaçada trama, fio a fio.
Quisera-te a alumbrada seiva dos desejos
A claridade do sorriso na bela fronte
Quisera os sons perdidos no solfejo
E na manhã do céu bruxuleante
O derradeiro sortilégio de uma estrela.

No claro/escuro em que me encontro
E ao fulgor de uma vela acesa
Velar-te em cálido e longo beijo de cinema
Num filme amante em que por fraco, anoiteço.

Levitem-se as taças, senhores! Ante a definitiva maça
E a analogia ébria com grandes calangos, tais horrores
Quadra livre que restar, dê-la a intensos ósculos, ardores.

A existência inteira a teve, a evitar-se os desmazelos.
Ao confluir dos rios, a afluência ascendente dos desejos.
Assim, compartir no coevo, a súmula diversa de tais beijos.

Ante a Tumba, os Ardores


Da magistral manhã em que o sopro venta
Ao sinuoso e estreito coche em que silencia
A vida, que se já não houve, mais se ausenta
Por entre o verde denso e alheio que vicia.

O poeta civil a fenecer, depravando em rude.
Tenazes bardos, putains, hijos, de vívida solidão
Se verão imortais amores, qual ilhas de solicitude.
Resta-lhe ao augure, à campa, fulgor assaz invenção.

De Bentinho para Capitu


A Joaquim Maria Machado de Assis

Observar-te em plácido sono, cuidado em madrigal
Levedura, entregue e lânguida, em negra gaze envolvida
Sobre o verde da relva, a serena ventura
De uma dama etérea, de tez tão clara
E, ainda mais, assim adormecida.
Como me é belo vislumbra-te
Ida à navegação dos sonhos.
É como liberar, num só mágico instante
Toda a dor, que de meu corpo fez refém
E da razão, me fez imune.
Ao sentir-te agora, no que, por meu desejo
Haveria sido ausente as neves da mútua incongruência
Defesnestro este o ignóbil e mortal ciúme.
Destarte, mesmo que o acaso de alguns intensos beijos
E estando longe das luzes de qualquer ciência
Ver-te assim, menina bela de minha existência
Como, em levitação, uma boneca de louça
E nem a mínima ruga na fronte alva
Que lhe turve o sono fundo e crispe o rosto
Devolve-se-me a crença no amor
E a plenitude à alma
E sem que Deus nenhum me ouça.
Faz-me ledo entender o porquê simulo tanto
E o porquê, de perdê-la, assim, tanto medo E o porque, de que tanto, a mim mesmo, minto.

Cinza Interior


a Ferreira Gullar

a casa é sempre presença
chão com falhas
que esconde o cisco de ovo
não varrido

a casa recende a café da manhã
e a outros cheiros
de um dia começando
misturado aos ficados da noite

a casa é o trabalho dos anos
a oclusão dos cantos
a ruminação dos insetos

a casa é o vento da tarde
é a espera pela chuva
para o viver do telhado

a casa é a saudade

é o beiral de abrigar ninhos
a algaravia das andorinhas

amor de pai/prontidão de filho
promessas de eternidade

a casa é vinho do porto
acalentando a noite fria
noite de amor lúbrico

a casa é choro de criança
lugar de morte e vigília

a casa é a casa da fazenda
avistando da varanda
os pastos no vale umbrífero
lá no longe da memória

a casa é útero ubérrimo
a parir aconchegos
e a preguiça doce do não-ser

Amor Perene


Ao alcance do amor perene, o herói
entrou-se por caminhos áridos.
Estorou as botas
na poeira ardente do chão.
Ao alcance do amar, somente
o herói vingou-se em ser sobrante
nas vagas e em tais mares presentes
navegou por novas rotas.

Ao alcance de um amor crente
viu-se em luz branca e brilhante
entregue, indefeso aos anseios
das sirenas sibilantes
à lhe turvarem a mente.

Ao alcance do amor, foi-se...andou
tão tonto ao sol latente, até seu brônzeo limiar.
Tomou da vida o mote e das costas da África
foi para o Mar Egeu, cuidando de buscar Amor
mais do que Hades, à Morte, mais do que honras
devidas, ao poderoso Odisseu.

Ao alcance do amor grande, se perdeu
pelo mar ingente e infindo
e ao colo das mulheres
que escalou feito falésias.

Ao alcance do amor fundo, tomou
o fogo à Prometeu e restituiu a luz do mundo
ao célebre sábio Tirésias.

O rapto à Tróia, de Helene...
O que mais se poderia
que lhe equivalesse em glórias

ao alcance do Amor Perene?

CARTA A UM JOVEM POETA

Paris, 17 de fevereiro de 1903
Prezadíssimo Senhor,
Sua carta alcançou-me apenas há poucos dias. Quero agradecer-lhe a grande e amável confiança. Pouco mais posso fazer. Não posso entrar em considerações acerca da feição de seus versos, pois sou alheio a toda e qualquer intenção crítica. Não há nada menos apropriado para tocar numa obra de arte do que palavras de crítica, que sempre resultam em mal-entendidos mais ou menos felizes.
As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizíveis quanto se nos pretenderia fazer crer; a maior parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou. Menos suscetíveis de expressão do que qualquer outra coisa são as obras de arte, — seres misteriosos cuja vida perdura, ao lado da nossa, efêmera.
Depois de feito este reparo, dir-lhe-ei ainda que seus versos não possuem feição própria, somente acenos discretos e velados de personalidade. É o que sinto com a maior clareza no último poema Minha alma. Aí, algo de peculiar procura expressão e forma. No belo poema A Leopardi talvez uma espécie de parentesco com esse grande solitário esteja apontando. No entanto, as poesias nada têm ainda de próprio e de independente, nem mesmo a última, nem mesmo a dirigida a Leopardi. Sua amável carta que as acompanha não deixou de me explicar certa insuficiência que senti ao ler seus versos sem que a pudesse definir explicitamente. Pergunta se os seus versos são bons.
Pergunta-o a mim, depois de o ter perguntado a outras pessoas. Manda-os a periódicos, compara-os com outras poesias e inquieta-se quando suas tentativas são recusadas por um ou outro redator. Pois bem — usando da licença que me deu de aconselhá-lo — peço-lhe que deixe tudo isso.
O senhor está olhando para fora, e é justamente o que menos deveria fazer neste momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar, — ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranquila de sua noite: "Sou mesmo forçado a escrever?” Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples "sou", então construa a sua vida de acordo com esta necessidade. Sua vida, até em sua hora mais indiferente e anódina, deverá tornar-se o sinal e o testemunho de tal pressão.
Aproxime-se então da natureza. Depois procure, como se fosse o primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde. Não escreva poesias de amor. Evite de início as formas usais e demasiado comuns: são essas as mais difíceis, pois precisa-se de uma força grande e amadurecida para se produzir algo de pessoal num domínio em que sobram tradições boas, algumas brilhantes. Eis por que deve fugir dos motivos gerais para aqueles que a sua própria existência cotidiana lhe oferece; relate suas mágoas e seus desejos, seus pensamentos passageiros, sua fé em qualquer beleza — relate tudo isto com íntima e humilde sinceridade.
Utilize, para se exprimir, as coisas do seu ambiente, as imagens dos seus sonhos e os objetos de sua lembrança. Se a própria existência cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse a si mesmo, diga consigo que não é bastante poeta para extrair as suas riquezas. Para o criador, com efeito, não há pobreza nem lugar mesquinho e indiferente.
Mesmo que se encontrasse numa prisão, cujas paredes impedissem todos os ruídos do mundo de chegar aos seus ouvidos, não lhe ficaria sempre sua infância, esta esplêndida e régia riqueza, esse tesouro de recordações? Volte a atenção para ela.
Procure soerguer as sensações submersas deste longínquo passado: sua personalidade há de reforçar-se, sua solidão há de alargar-se e transformar-se numa habitação entre o lusco e fusco diante do qual o ruído dos outros passa longe, sem nela penetrar. Se depois desta volta para dentro, deste ensimesmar-se, brotarem versos, não mais pensará em perguntar seja a quem for se são bons.
Nem tão pouco tentará interessar as revistas por esses seus trabalhos, pois há de ver neles sua querida propriedade natural, um pedaço e uma voz de sua vida. Uma obra de arte é boa quando nasceu por necessidade. Neste carácter de origem está o seu critério, — o único existente. Também, meu prezado Senhor, não lhe posso dar outro conselho fora deste: entrar em si e examinar as profundidades de onde jorra sua vida; na fonte desta é que encontrará resposta à questão de saber se deve criar. Aceite-a tal como se lhe apresentar à primeira vista sem procurar interpretá-la.
Talvez venha significar que o Senhor é chamado a ser um artista.
Nesse caso aceite o destino e carregue-o com seu peso e a sua grandeza, sem nunca se preocupar com recompensa que possa vir de fora. O criador, com efeito, deve ser um mundo para si mesmo e encontrar tudo em si e nessa natureza a que se aliou.
Mas talvez se dê o caso de, após essa decida em si mesmo e em seu âmago solitário, ter o Senhor de renunciar a se tornar poeta. (Basta como já disse, sentir que se poderia viver sem escrever para não mais se ter o direito de fazê-lo). Mesmo assim, o exame de sua consciência que lhe peço não terá sido inútil.
Sua vida, a partir desse momento, há de encontrar caminhos próprios. Que sejam bons, ricos e largos é o que lhe desejo, muito mais do que lhe posso exprimir. Que mais lhe devo dizer? Parece-me que tudo foi acentuado segundo convinha. Afinal de contas, queria apenas sugerir-lhe que se deixasse chegar com discrição e gravidade ao termo de sua evolução. Nada a poderia perturbar mais do que olhar para fora e aguardar de fora respostas a perguntas a que talvez somente seu sentimento mais íntimo possa responder na hora mais silenciosa.
Foi com alegria que encontrei em sua carta o nome do professor Horacek; guardo por este amável sábio uma grande estima e uma gratidão que desafia os anos. Fale-lhe, por favor, neste meu sentimento. É bondade dele lembrar-se ainda de mim; e eu sei apreciá-la.Restituo-lhe ao mesmo tempo os versos que me veio confiar amigavelmente.
Agradeço-lhe mais uma vez a grandeza e a cordialidade de sua confiança. Procurei por meio desta resposta sincera, feita o melhor que pude, tornar-me um pouco mais digno dela do que realmente sou, em minha qualidade de estranho.
Com todo o devotamento e toda a simpatia,
Rainer Maria Rilke